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Seres humanos têm uma necessidade profunda de estabelecer laços e conexões. Se não conseguirmos nos conectar uns com os outros, vamos nos conectar com o que encontrarmos – a bolinha pulando na roleta ou a ponta da agulha de uma seringa.
Faz cem anos que as drogas foram proibidas pela primeira vez – e, ao longo desse século de guerra contra as drogas, professores e governos nos contaram histórias de vício. Essas histórias estão enraizadas em nossas mentes. Elas parecem óbvias, verdades evidentes.
Até três ano atrás, quando comecei uma jornada de 50 000 quilômetros para escrever meu novo livro, ‘Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs’ (Perseguindo o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra as drogas, em tradução livre), eu também acreditava nisso. Mas o que descobri em minhas viagens é que quase tudo o que nos contaram sobre o vício está errado – e existe uma história muito diferente à nossa espera, se estivermos prontos para ouvi-la.
Se realmente absorvermos essa nova história, teremos de mudar muito mais que a guerra contra as drogas. Teremos de nos transformar.
Aprendi com uma mistura extraordinária de pessoas que conheci na estrada. Dos amigos de Billie Holiday, que me ajudaram a entender como o fundador da guerra contra as drogas a perseguiu e ajudou a matá-la. De um médico judeu que foi tirado às escondidas do gueto de Budapeste quando era bebê, para depois destravar os segredos do vício quando adulto.
De um transexual traficante de crack do Brooklyn que foi concebido quando sua mãe, uma viciada em crack, foi estuprada pelo pai dele, um policial de Nova York. De um homem que foi mantido preso no fundo de um poço durante dois anos por uma ditadura para depois emergir e ser eleito presidente do Uruguai, começando os dias finais da guerra contra as drogas.
Tinha uma razão bastante pessoal para sair em busca dessas respostas. Uma das minhas primeiras lembranças da infância é tentar acordar um parente, sem sucesso. Desde então, venho pensando sobre o mistério do vício – o que faz algumas pessoas se fixar em uma droga ou um comportamento a ponto de não conseguir parar? Como ajudamos essas pessoas a voltar para a gente? Ao envelhecer, outro parente próximo ficou viciado em cocaína, e eu me envolvi com uma pessoa viciada em heroína. Acho que me sinto em casa perto de viciados.
Se você me perguntasse lá atrás o que provoca o vício em drogas, te olharia como se você fosse um idiota e diria: “Drogas. Dã.” Não é difícil entender. Achei que tivesse visto isso acontecer na minha própria vida. Qualquer um consegue explicar. Imagine se eu, você e as próximas 20 pessoas que passarem na rua tomássemos uma droga potente por 20 dias. Existem agentes químicos fortes nessas drogas, então no vigésimo-primeiro dia nossos corpos precisariam desses químicos. Teríamos uma necessidade urgente deles. Estaríamos viciados. Esse é o significado de vício.
Essa teoria foi estabelecida por meio de experimentos com ratos – experimentos que foram injetados na psique americana nos anos 1980, em um famoso anúncio da Partnership for a Drug-Free America. Você talvez se lembre. O experimento é simples. Coloque um rato numa gaiola, sozinho, com duas garrafas d’água. Uma delas tem só água. A outra tem água misturada com cocaína ou heroína. Em quase todas as vezes que você fizer esse experimento, o rato vai ficar obcecado com a água com drogas. Ele vai tomá-la até morrer.
O anúncio explica: “Só uma droga é tão viciante, nove de dez ratos de laboratório vão usá-la. E usá-la. E usá-la. Até a morte. É chamada cocaína. E ela pode fazer o mesmo com você”.
Mas, nos anos 1970, um professor de psicologia de Vancouver chamado Bruce Alexander percebeu algo estranho nesse experimento. O rato está sozinho na gaiola. Ele não tem nada para fazer além de usar a droga. O que aconteceria se tentássemos algo diferente? Então Alexander criou o Rat Park. É uma gaiola sofisticada, onde os ratos têm bolas coloridas e túneis para brincar, vários amigos e a melhor das comidas: tudo o que um rato poderia desejar. Alexander queria saber o que iria acontecer.
No Rat Park, todos os ratos tomaram água das duas garrafas, é claro, porque não sabiam o que elas continham. Mas o que aconteceu depois foi surpreendente.
Os ratos nessa vida boa não gostavam da água com drogas. Eles basicamente a ignoravam: consumiam menos de um quarto dessa água, em comparação com os animais isolados. Nenhum deles morreu. Todos os ratos que estavam sozinhos em suas gaiolas se tornaram dependentes da droga, mas isso não aconteceu com nenhum dos animais do Rat Park.
Inicialmente, achei que isso fosse meramente uma idiossincrasia dos ratos, até descobrir que havia – na mesma época do experimento do Rat Park – um equivalente humano em andamento. Era a Guerra do Vietnã.
A revista Time relatou que, entre os soldados americanos, usar heroína estava se tornando um hábito tão corriqueiro quanto mascar chiclete, e existem evidências sólidas para sustentar tal afirmação: cerca de 20% dos soldados americanos ficaram viciados em heroína no Vietnã, segundo um estudo publicado no Archives of General Psychiatry. Muita gente ficou compreensivelmente aterrorizada; elas achavam que com o fim da guerra um enorme número de viciados voltaria para casa.
Mas, na realidade, cerca de 95% dos soldados viciados – segundo o mesmo estudo – simplesmente pararam de usar heroína. Alguns poucos foram para clínicas de recuperação. Eles passaram de uma gaiola aterrorizante para uma agradável, e não queriam mais usar drogas.
Alexander argumenta que essa descoberta é uma contestação profunda tanto da visão direitista, segundo a qual o vício é uma fraqueza moral causada por uma vida de festas e hedonismo, quanto da visão liberal, que diz que o vício é uma doença que existe num cérebro quimicamente sequestrado. Na verdade, segundo Alexander, vício é adaptação. Não é você. É a gaiola.
Depois da primeira fase do Rat Park, Alexander levou seu teste além. Ele refez os primeiros experimentos, nos quais os ratos se tornavam usuários compulsivos de drogas. Ele os deixou usar a droga durante 57 dias – se tem um jeito de ficar viciado, é esse.
Então ele tirou os animais do isolamento e os colocou no Rat Park. Alexander queria saber se, uma vez viciado, o cérebro estava sequestrado e não havia maneira de recuperá-lo. As drogas assumem o controle? O que aconteceu – de novo – foi impressionante. Os ratos pareciam exibir alguns tremores de abstinência, mas logo pararam de usar as drogas pesadamente e voltaram a ter uma vida normal. A gaiola boa os salvou. (As referências completas de todos os estudos que estou mencionando estão no livro.)
Quando soube disso, fiquei encucado. Como seria possível? Essa nova teoria é um ataque tão radical ao que nos contaram que não parecia ser verdade. Mas, quanto mais cientistas entrevistava, quanto mais estudos lia, mais descobria coisas que não pareciam fazer sentido – a menos que você leve em conta essa nova abordagem.
Eis um exemplo de experimento que acontece à sua volta, e pode inclusive acontecer com você um dia desses. Se você for atropelado e quebrar a bacia, provavelmente vão te dar diamorfina, o nome médico para heroína.
No hospital, haverá muita gente tomando heroína por longos períodos, para aliviar a dor. A heroína que o médico te der vai ser muito mais pura e potente que aquela usada pelos viciados, que compram uma droga adulterada pelos traficantes. Então, se a velha teoria do vício estiver certa – a culpa é da droga; ela faz seu corpo precisar dela -, é óbvio o que vai acontecer. As pessoas sairão do hospital e irão direto procurar um traficante para comprar heroína.
Mas eis o que é estranho: isso virtualmente nunca acontece. Como me explicou o médico canadense Gabor Mate os usuários de heroína médica simplesmente param, apesar de meses de uso. A mesma droga, usada pelo mesmo período, cria viciados nas ruas, mas não afeta os pacientes de hospitais.
Se você ainda acredita, como eu acreditava, que o vício é causado por agentes químicos, isso não faz sentido. Mas, se você acredita na teoria de Bruce Alexander, a imagem começa a entrar em foco. O viciado da rua é o rato da primeira gaiola, isolado, sozinho, com uma única fonte de conforto. O paciente do hospital é o rato da segunda gaiola. Ele vai para casa, para uma vida em que está cercado pelas pessoas que ama. A droga é a mesma, mas o ambiente é diferente.
Isso nos dá um insight muito mais profundo que a necessidade de entender os viciados. O professor Peter Cohen argumenta que os seres humanos têm uma necessidade profunda de estabelecer laços e conexões. É como nos satisfazemos. Se não conseguirmos nos conectar uns com os outros, vamos nos conectar com o que encontrarmos – a bolinha pulando na roleta ou a ponta da agulha de uma seringa. Ele diz que deveríamos simplesmente parar de falar em “vício”: deveríamos falar em “ligação”. Um viciado em heroína criou uma ligação com a droga porque não conseguiu estabelecer outras conexões.
O oposto de vício, portanto, não é sobriedade. É conexão humana.
Quando soube disso tudo, fui sendo persuadido gradualmente. Mas restava uma dúvida incômoda. Será que os cientistas estão dizendo que a parte química do vício não faz diferença nenhuma?
Me explicaram – você pode se viciar em jogo, mas ninguém vai achar que você vai injetar um baralho nas veias. Você pode ser viciado, mas não há o lado químico. Fui a uma reunião dos Viciados em Jogos Anônimos em Las Vegas (com a permissão de todos os presentes, que sabiam que eu estava lá apenas como observador). Eles eram tão viciados quanto os usuários de cocaína e heroína que conheci. Mas uma mesa de pôquer não tem químicos.
Ainda assim, perguntei: a química desempenha algum papel? Um experimento tem a resposta precisa, que descobri no livro The Cult of Pharmacology (o culto da farmacologia, em tradução livre), de Richard DeGranpre.
Todos concordam que fumar cigarros é um dos processos mais viciantes que existem. Os químicos do tabaco vêm da nicotina. Quando foram inventados os adesivos de nicotina, no começo dos anos 1990, houve uma grande onda de otimismo – os fumantes poderiam satisfazer suas necessidades químicas sem o resto dos efeitos imundos (e mortais) do cigarro. Seria a libertação.
Mas o Ministério da Saúde descobriu que apenas 17,7% dos fumantes conseguem parar de fumar usando adesivos de nicotina. É claro que não é pouca coisa. Se os químicos respondem por 17,7% do vício, como mostra esse dado, ainda temos milhões de vidas arruinadas globalmente. Mas o que ele revela, mais uma vez, é que a história que nos contaram sobre as causas químicas do vício é real, mas só uma parte pequena de uma fotografia muito maior.
Isso tem enormes implicações para a secular guerra contra as drogas. Essa guerra massiva – que, como vi, mata gente dos shoppings mexicanos às ruas de Liverpool – é baseada na afirmação de que precisamos erradicar fisicamente uma vasta gama de químicos, pois eles sequestram cérebros e provocam o vício. Mas, se as drogas em si não são as causadoras do vício – se, na verdade, é a desconexão que causa o vício –, então nada disso faz sentido.
Ironicamente, a guerra contra as drogas na verdade potencializa esses causadores de vício. Por exemplo: fui a uma prisão no Arizona – “Tent City” –, onde os detentos ficam presos em minúsculas celas de pedra (“O Buraco”) por semanas a fio se usarem drogas. É a versão humana mais próxima que consigo imaginar das gaiolas de isolamento dos ratos. Quando os presos saem da cadeia, não conseguirão emprego, porque têm ficha criminal – garantido um isolamento ainda maior. Vi exemplos assim no mundo inteiro.
Existe uma alternativa. Você pode criar um sistema desenhado para ajudar os viciados a se reconectar com o mundo – e, assim, deixar o vício para trás.
Isso não é teoria. Está acontecendo. Vi com meus próprios olhos. Cerca de 15 anos atrás, Portugal tinha um dos piores problemas de drogas da Europa – 1% da população era viciada em heroína. Os portugueses tentaram a guerra contra as drogas, mas o problema só piorava. Então decidiram fazer algo radicalmente diferente. Resolveram descriminar todas as drogas e usar o dinheiro gasto para prender os viciados em programas de reconexão – com seus sentimentos e com a sociedade. O passo mais crucial é garantir moradia e empregos subsidiados, para que eles tenham propósito na vida, algo que os faça sair da cama pela manhã. Em clínicas acolhedoras, vi os viciados aprendendo a se reconectar com seus sentimentos, depois de anos de trauma e de um silêncio forçado causado pelas drogas.
Um exemplo que observei foi um grupo de viciados que recebeu um empréstimos para começar uma empresa de coleta de lixo. Repentinamente, eles eram um grupo, todos conectados entre si e com a sociedade, cuidando uns dos outros.
Agora se conhecem os resultados disso tudo. Um estudo independente do British Journal of Criminology descobriu que, desde a total descriminação, o vício caiu e o uso de drogas injetáveis teve redução de 50%. Repito: o uso de drogas injetáveis teve redução de 50%. A descriminação foi um sucesso tão grande que pouquíssima gente em Portugal defende uma volta ao antigo sistema. O maior opositor dessa política em 2000 era João Figueira, o principal policial da força antidrogas. Ele fez alertas terríveis, do tipo que se espera ouvir na Fox News ou ler no Daily Mail. Mas, quando conversamos em Lisboa, Figueira me disse que nenhuma de suas previsões se confirmou – e agora ele espera que o resto do mundo siga o exemplo português.
Isso não é relevante só para os viciados que amo. É relevante para todos nós, pois nos força a pensar de maneira diferente a respeito de nós mesmos. Os seres humanos são animais que precisam de laços. Precisamos de conexões e de amor. A frase mais sábia do século 20 foi “Apenas se conecte”, de E.M. Forster. Mas criamos um ambiente e uma cultura que cortou conexões, ou que oferece apenas um simulacro delas: a internet. O crescimento do vício é sintoma de uma doença mais profunda na maneira como vivemos – constantemente olhando para o próximo objeto brilhante que queremos comprar, em vez dos humanos que nos cercam.
O escritor George Monbiot fala na “era da solidão“ Criamos sociedades humanas em que o corte de conexões nunca foi tão fácil. Bruce Alexander, o criador do Rat Park, me disse que falamos demais em recuperação de indivíduos. Precisamos falar de recuperação social – como todos nos recuperamos juntos da doença do isolamento que recai sobre nós como uma névoa densa.
Mas essas novas evidências não são apenas um desafio político. Elas não nos forçam somente a transformar nossas cabeças. Elas nos forçam a transformar nossos corações.
É muito difícil amar um viciado. Quando olho para os viciados que amo, é sempre tentador optar pela estratégia durona recomendada por programas como Intervention – falar para o viciado tomar jeito ou então cortá-lo de sua vida. A mensagem é que o viciado que não parar com as drogas deve ser rejeitado. É a lógica da guerra contra as drogas importada para nossas vidas. Mas, na verdade, aprendi que isso só agrava o vício – e você pode perder a pessoa para sempre. Voltei para casa determinado a me aproximar como nunca dos viciados da minha vida – dizer para eles que os amo incondicionalmente, consigam eles parar ou não.
Quando terminei minha longa jornada, olhei para meu ex-namorado, em crise de abstinência, tremendo no quarto de visitas, e pensei nele de um jeito diferente. Há um século estamos entoando cantos de guerra sobre os viciados. Quando secava a testa dele, me ocorreu que deveríamos estar entoando canções de amor.
A história completa da jornada de Johann Hari – contada por meio das histórias das pessoas que ele conheceu – está em ‘Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs’ (Perseguindo o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra as drogas, em tradução livre), publicada pela Bloomsbury. O livro foi elogiado por Elton John, Naomi Klein e Glenn Greenwald, entre outros. Saiba mais sobre o livro
As referências completas e fontes para todas as informações citadas neste artigo estão nas extensas notas do livro.
Até três ano atrás, quando comecei uma jornada de 50 000 quilômetros para escrever meu novo livro, ‘Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs’ (Perseguindo o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra as drogas, em tradução livre), eu também acreditava nisso. Mas o que descobri em minhas viagens é que quase tudo o que nos contaram sobre o vício está errado – e existe uma história muito diferente à nossa espera, se estivermos prontos para ouvi-la.
Se realmente absorvermos essa nova história, teremos de mudar muito mais que a guerra contra as drogas. Teremos de nos transformar.
Aprendi com uma mistura extraordinária de pessoas que conheci na estrada. Dos amigos de Billie Holiday, que me ajudaram a entender como o fundador da guerra contra as drogas a perseguiu e ajudou a matá-la. De um médico judeu que foi tirado às escondidas do gueto de Budapeste quando era bebê, para depois destravar os segredos do vício quando adulto.
De um transexual traficante de crack do Brooklyn que foi concebido quando sua mãe, uma viciada em crack, foi estuprada pelo pai dele, um policial de Nova York. De um homem que foi mantido preso no fundo de um poço durante dois anos por uma ditadura para depois emergir e ser eleito presidente do Uruguai, começando os dias finais da guerra contra as drogas.
Tinha uma razão bastante pessoal para sair em busca dessas respostas. Uma das minhas primeiras lembranças da infância é tentar acordar um parente, sem sucesso. Desde então, venho pensando sobre o mistério do vício – o que faz algumas pessoas se fixar em uma droga ou um comportamento a ponto de não conseguir parar? Como ajudamos essas pessoas a voltar para a gente? Ao envelhecer, outro parente próximo ficou viciado em cocaína, e eu me envolvi com uma pessoa viciada em heroína. Acho que me sinto em casa perto de viciados.
Se você me perguntasse lá atrás o que provoca o vício em drogas, te olharia como se você fosse um idiota e diria: “Drogas. Dã.” Não é difícil entender. Achei que tivesse visto isso acontecer na minha própria vida. Qualquer um consegue explicar. Imagine se eu, você e as próximas 20 pessoas que passarem na rua tomássemos uma droga potente por 20 dias. Existem agentes químicos fortes nessas drogas, então no vigésimo-primeiro dia nossos corpos precisariam desses químicos. Teríamos uma necessidade urgente deles. Estaríamos viciados. Esse é o significado de vício.
Essa teoria foi estabelecida por meio de experimentos com ratos – experimentos que foram injetados na psique americana nos anos 1980, em um famoso anúncio da Partnership for a Drug-Free America. Você talvez se lembre. O experimento é simples. Coloque um rato numa gaiola, sozinho, com duas garrafas d’água. Uma delas tem só água. A outra tem água misturada com cocaína ou heroína. Em quase todas as vezes que você fizer esse experimento, o rato vai ficar obcecado com a água com drogas. Ele vai tomá-la até morrer.
O anúncio explica: “Só uma droga é tão viciante, nove de dez ratos de laboratório vão usá-la. E usá-la. E usá-la. Até a morte. É chamada cocaína. E ela pode fazer o mesmo com você”.
Mas, nos anos 1970, um professor de psicologia de Vancouver chamado Bruce Alexander percebeu algo estranho nesse experimento. O rato está sozinho na gaiola. Ele não tem nada para fazer além de usar a droga. O que aconteceria se tentássemos algo diferente? Então Alexander criou o Rat Park. É uma gaiola sofisticada, onde os ratos têm bolas coloridas e túneis para brincar, vários amigos e a melhor das comidas: tudo o que um rato poderia desejar. Alexander queria saber o que iria acontecer.
No Rat Park, todos os ratos tomaram água das duas garrafas, é claro, porque não sabiam o que elas continham. Mas o que aconteceu depois foi surpreendente.
Os ratos nessa vida boa não gostavam da água com drogas. Eles basicamente a ignoravam: consumiam menos de um quarto dessa água, em comparação com os animais isolados. Nenhum deles morreu. Todos os ratos que estavam sozinhos em suas gaiolas se tornaram dependentes da droga, mas isso não aconteceu com nenhum dos animais do Rat Park.
Inicialmente, achei que isso fosse meramente uma idiossincrasia dos ratos, até descobrir que havia – na mesma época do experimento do Rat Park – um equivalente humano em andamento. Era a Guerra do Vietnã.
A revista Time relatou que, entre os soldados americanos, usar heroína estava se tornando um hábito tão corriqueiro quanto mascar chiclete, e existem evidências sólidas para sustentar tal afirmação: cerca de 20% dos soldados americanos ficaram viciados em heroína no Vietnã, segundo um estudo publicado no Archives of General Psychiatry. Muita gente ficou compreensivelmente aterrorizada; elas achavam que com o fim da guerra um enorme número de viciados voltaria para casa.
Mas, na realidade, cerca de 95% dos soldados viciados – segundo o mesmo estudo – simplesmente pararam de usar heroína. Alguns poucos foram para clínicas de recuperação. Eles passaram de uma gaiola aterrorizante para uma agradável, e não queriam mais usar drogas.
Alexander argumenta que essa descoberta é uma contestação profunda tanto da visão direitista, segundo a qual o vício é uma fraqueza moral causada por uma vida de festas e hedonismo, quanto da visão liberal, que diz que o vício é uma doença que existe num cérebro quimicamente sequestrado. Na verdade, segundo Alexander, vício é adaptação. Não é você. É a gaiola.
Depois da primeira fase do Rat Park, Alexander levou seu teste além. Ele refez os primeiros experimentos, nos quais os ratos se tornavam usuários compulsivos de drogas. Ele os deixou usar a droga durante 57 dias – se tem um jeito de ficar viciado, é esse.
Então ele tirou os animais do isolamento e os colocou no Rat Park. Alexander queria saber se, uma vez viciado, o cérebro estava sequestrado e não havia maneira de recuperá-lo. As drogas assumem o controle? O que aconteceu – de novo – foi impressionante. Os ratos pareciam exibir alguns tremores de abstinência, mas logo pararam de usar as drogas pesadamente e voltaram a ter uma vida normal. A gaiola boa os salvou. (As referências completas de todos os estudos que estou mencionando estão no livro.)
Quando soube disso, fiquei encucado. Como seria possível? Essa nova teoria é um ataque tão radical ao que nos contaram que não parecia ser verdade. Mas, quanto mais cientistas entrevistava, quanto mais estudos lia, mais descobria coisas que não pareciam fazer sentido – a menos que você leve em conta essa nova abordagem.
Eis um exemplo de experimento que acontece à sua volta, e pode inclusive acontecer com você um dia desses. Se você for atropelado e quebrar a bacia, provavelmente vão te dar diamorfina, o nome médico para heroína.
No hospital, haverá muita gente tomando heroína por longos períodos, para aliviar a dor. A heroína que o médico te der vai ser muito mais pura e potente que aquela usada pelos viciados, que compram uma droga adulterada pelos traficantes. Então, se a velha teoria do vício estiver certa – a culpa é da droga; ela faz seu corpo precisar dela -, é óbvio o que vai acontecer. As pessoas sairão do hospital e irão direto procurar um traficante para comprar heroína.
Mas eis o que é estranho: isso virtualmente nunca acontece. Como me explicou o médico canadense Gabor Mate os usuários de heroína médica simplesmente param, apesar de meses de uso. A mesma droga, usada pelo mesmo período, cria viciados nas ruas, mas não afeta os pacientes de hospitais.
Se você ainda acredita, como eu acreditava, que o vício é causado por agentes químicos, isso não faz sentido. Mas, se você acredita na teoria de Bruce Alexander, a imagem começa a entrar em foco. O viciado da rua é o rato da primeira gaiola, isolado, sozinho, com uma única fonte de conforto. O paciente do hospital é o rato da segunda gaiola. Ele vai para casa, para uma vida em que está cercado pelas pessoas que ama. A droga é a mesma, mas o ambiente é diferente.
Isso nos dá um insight muito mais profundo que a necessidade de entender os viciados. O professor Peter Cohen argumenta que os seres humanos têm uma necessidade profunda de estabelecer laços e conexões. É como nos satisfazemos. Se não conseguirmos nos conectar uns com os outros, vamos nos conectar com o que encontrarmos – a bolinha pulando na roleta ou a ponta da agulha de uma seringa. Ele diz que deveríamos simplesmente parar de falar em “vício”: deveríamos falar em “ligação”. Um viciado em heroína criou uma ligação com a droga porque não conseguiu estabelecer outras conexões.
O oposto de vício, portanto, não é sobriedade. É conexão humana.
Quando soube disso tudo, fui sendo persuadido gradualmente. Mas restava uma dúvida incômoda. Será que os cientistas estão dizendo que a parte química do vício não faz diferença nenhuma?
Me explicaram – você pode se viciar em jogo, mas ninguém vai achar que você vai injetar um baralho nas veias. Você pode ser viciado, mas não há o lado químico. Fui a uma reunião dos Viciados em Jogos Anônimos em Las Vegas (com a permissão de todos os presentes, que sabiam que eu estava lá apenas como observador). Eles eram tão viciados quanto os usuários de cocaína e heroína que conheci. Mas uma mesa de pôquer não tem químicos.
Ainda assim, perguntei: a química desempenha algum papel? Um experimento tem a resposta precisa, que descobri no livro The Cult of Pharmacology (o culto da farmacologia, em tradução livre), de Richard DeGranpre.
Todos concordam que fumar cigarros é um dos processos mais viciantes que existem. Os químicos do tabaco vêm da nicotina. Quando foram inventados os adesivos de nicotina, no começo dos anos 1990, houve uma grande onda de otimismo – os fumantes poderiam satisfazer suas necessidades químicas sem o resto dos efeitos imundos (e mortais) do cigarro. Seria a libertação.
Mas o Ministério da Saúde descobriu que apenas 17,7% dos fumantes conseguem parar de fumar usando adesivos de nicotina. É claro que não é pouca coisa. Se os químicos respondem por 17,7% do vício, como mostra esse dado, ainda temos milhões de vidas arruinadas globalmente. Mas o que ele revela, mais uma vez, é que a história que nos contaram sobre as causas químicas do vício é real, mas só uma parte pequena de uma fotografia muito maior.
Isso tem enormes implicações para a secular guerra contra as drogas. Essa guerra massiva – que, como vi, mata gente dos shoppings mexicanos às ruas de Liverpool – é baseada na afirmação de que precisamos erradicar fisicamente uma vasta gama de químicos, pois eles sequestram cérebros e provocam o vício. Mas, se as drogas em si não são as causadoras do vício – se, na verdade, é a desconexão que causa o vício –, então nada disso faz sentido.
Ironicamente, a guerra contra as drogas na verdade potencializa esses causadores de vício. Por exemplo: fui a uma prisão no Arizona – “Tent City” –, onde os detentos ficam presos em minúsculas celas de pedra (“O Buraco”) por semanas a fio se usarem drogas. É a versão humana mais próxima que consigo imaginar das gaiolas de isolamento dos ratos. Quando os presos saem da cadeia, não conseguirão emprego, porque têm ficha criminal – garantido um isolamento ainda maior. Vi exemplos assim no mundo inteiro.
Existe uma alternativa. Você pode criar um sistema desenhado para ajudar os viciados a se reconectar com o mundo – e, assim, deixar o vício para trás.
Isso não é teoria. Está acontecendo. Vi com meus próprios olhos. Cerca de 15 anos atrás, Portugal tinha um dos piores problemas de drogas da Europa – 1% da população era viciada em heroína. Os portugueses tentaram a guerra contra as drogas, mas o problema só piorava. Então decidiram fazer algo radicalmente diferente. Resolveram descriminar todas as drogas e usar o dinheiro gasto para prender os viciados em programas de reconexão – com seus sentimentos e com a sociedade. O passo mais crucial é garantir moradia e empregos subsidiados, para que eles tenham propósito na vida, algo que os faça sair da cama pela manhã. Em clínicas acolhedoras, vi os viciados aprendendo a se reconectar com seus sentimentos, depois de anos de trauma e de um silêncio forçado causado pelas drogas.
Um exemplo que observei foi um grupo de viciados que recebeu um empréstimos para começar uma empresa de coleta de lixo. Repentinamente, eles eram um grupo, todos conectados entre si e com a sociedade, cuidando uns dos outros.
Agora se conhecem os resultados disso tudo. Um estudo independente do British Journal of Criminology descobriu que, desde a total descriminação, o vício caiu e o uso de drogas injetáveis teve redução de 50%. Repito: o uso de drogas injetáveis teve redução de 50%. A descriminação foi um sucesso tão grande que pouquíssima gente em Portugal defende uma volta ao antigo sistema. O maior opositor dessa política em 2000 era João Figueira, o principal policial da força antidrogas. Ele fez alertas terríveis, do tipo que se espera ouvir na Fox News ou ler no Daily Mail. Mas, quando conversamos em Lisboa, Figueira me disse que nenhuma de suas previsões se confirmou – e agora ele espera que o resto do mundo siga o exemplo português.
Isso não é relevante só para os viciados que amo. É relevante para todos nós, pois nos força a pensar de maneira diferente a respeito de nós mesmos. Os seres humanos são animais que precisam de laços. Precisamos de conexões e de amor. A frase mais sábia do século 20 foi “Apenas se conecte”, de E.M. Forster. Mas criamos um ambiente e uma cultura que cortou conexões, ou que oferece apenas um simulacro delas: a internet. O crescimento do vício é sintoma de uma doença mais profunda na maneira como vivemos – constantemente olhando para o próximo objeto brilhante que queremos comprar, em vez dos humanos que nos cercam.
O escritor George Monbiot fala na “era da solidão“ Criamos sociedades humanas em que o corte de conexões nunca foi tão fácil. Bruce Alexander, o criador do Rat Park, me disse que falamos demais em recuperação de indivíduos. Precisamos falar de recuperação social – como todos nos recuperamos juntos da doença do isolamento que recai sobre nós como uma névoa densa.
Mas essas novas evidências não são apenas um desafio político. Elas não nos forçam somente a transformar nossas cabeças. Elas nos forçam a transformar nossos corações.
É muito difícil amar um viciado. Quando olho para os viciados que amo, é sempre tentador optar pela estratégia durona recomendada por programas como Intervention – falar para o viciado tomar jeito ou então cortá-lo de sua vida. A mensagem é que o viciado que não parar com as drogas deve ser rejeitado. É a lógica da guerra contra as drogas importada para nossas vidas. Mas, na verdade, aprendi que isso só agrava o vício – e você pode perder a pessoa para sempre. Voltei para casa determinado a me aproximar como nunca dos viciados da minha vida – dizer para eles que os amo incondicionalmente, consigam eles parar ou não.
Quando terminei minha longa jornada, olhei para meu ex-namorado, em crise de abstinência, tremendo no quarto de visitas, e pensei nele de um jeito diferente. Há um século estamos entoando cantos de guerra sobre os viciados. Quando secava a testa dele, me ocorreu que deveríamos estar entoando canções de amor.
A história completa da jornada de Johann Hari – contada por meio das histórias das pessoas que ele conheceu – está em ‘Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs’ (Perseguindo o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra as drogas, em tradução livre), publicada pela Bloomsbury. O livro foi elogiado por Elton John, Naomi Klein e Glenn Greenwald, entre outros. Saiba mais sobre o livro
As referências completas e fontes para todas as informações citadas neste artigo estão nas extensas notas do livro.