“Se colocar no papel, devo gastar mais com vela do que com a minha conta de luz”, diz o antropólogo e podcaster Orlando Calheiros, 38. Nos últimos meses, o apresentador do “Benzina” percebeu que “gasta fácil” R$ 200 por mês num item que quase dobrou o preço em um ano.
Foram dois golpes de uma vez para elevar o preço da vela. O produto reflete a alta de combustíveis, que provocou um efeito dominó inflacionário nas cadeias de produção, e a queda brusca da produção da matéria-prima, parafina, pela Petrobras.
Calheiros é ogã (espécie de sacerdote) no omoloko, uma religião de matriz africana, como a umbanda e o candomblé. Praxe religiosa em boa parte do país, da igreja católica ao terreiro do pai de santo, acender velas também é parte essencial em sua fé.
“Olha, tenho meus assentamentos [representações de orixás]. Gasto, às vezes, sete velas de sete dias por semana apenas em casa. Até mais. Leve em consideração que o fardo mais barato que se encontra por aqui no Rio de Janeiro está batendo na casa dos R$ 80”, conta. “Agora, imagine isso na escala de um barracão de santo.”
Acontece que a estatal o fabrica em duas refinarias, uma em Duque de Caxias (RJ), a outra em São Francisco do Conde (BA). E a unidade baiana está em manutenção, com previsão de retorno para outubro, como a empresa diz por meio de sua assessoria de imprensa.
“Desde 2020, o mercado brasileiro tem sido atendido majoritariamente por produtos importados”, diz a Petrobras em nota. Sua participação média no mercado caiu de 41% para 26%, quando comparamos o ano de 2020 com o acumulado até agosto de 2021.
Até lá, a solução é importar. E, se os fabricantes pagam caro por isso, o prejuízo não morre com eles. “Diminuímos nossas margens [de lucro], ajustamos processos, pessoas, custo e repassamos para o consumidor”, diz Pollyana Rodrigues, sócia da Velas Raio de Fogo. “Não temos outra opção.”
Em agosto do ano passado, a empresa de Rodrigues pagava R$ 7,80 pelo quilo de parafina. Dali vinha o carro-chefe da casa, a vela de sete dias, tipo popular no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida. A unidade era vendida por R$ 3,80.
Um ano depois, a parafina saía por R$ 15,45, um galope de 98%. Com produção mensal de 15 toneladas, Raio de Fogo passou a cobrar R$ 6 pelo mesmo modelo de vela, 58% a mais do que um ano antes.
“Na falta do produto nacional, os distribuidores foram obrigados a buscar alternativas fora do país: China, Grécia, Egito, Estados Unidos. Isso encarece bastante, pois impostos e taxas de importação para nacionalização do produto são muito elevados”, diz Rodrigues.
O cenário piora. Cléside Meneses lembra do frete internacional de contêineres e navios em alta. E como esquecer dele? “O dólar fez o produto quase duplicar de preço.”
Meneses é gestor comercial da Guanabara Nordeste, braço baiano do grupo que se diz o maior fabricante de velas de parafina da América Latina. Só seu setor é responsável por cerca de 80 mil caixas por mês.
Quisera ele penar apenas com o custo da parafina. As embalagens plásticas, as caixas de papelão, os pavios –quase todos os insumos sofreram alguma alta, diz.
Especialista em petróleo, gás e naval da Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro), Sávio Bueno afirma à reportagem que a interrupção de grande parcela da produção de parafina no Brasil “foi uma surpresa para boa parte da indústria demandante”. Existe, sim, um mercado local capaz de absorver os volumes produzidos pela estatal, complementa.
A Petrobras afirma que, “para uma adequada compreensão dos efeitos de suas políticas sobre o preço percebido pelo consumidor final”, é preciso entender que quem adquire parafina com ela “também busca suprimento com produtos importados e é responsável por transporte, comercialização e, eventualmente, adequação da forma (solidificação da vela) e embalagem”.
Logo, pessoas como o antropólogo Orlando, que gasta com vela quase a mesma coisa do que com energia elétrica, pagam caro por um processo que envolve outras parcelas. “Custos de transporte, tributos, margem comercial etc., [coisas] sobre as quais a Petrobras não tem qualquer ingerência.”
A aposentada Irene Ferreira, 68, tem há três décadas o hábito de deixar acesa uma chama “pra santinha” –Santa Rita, a padroeira das causas impossíveis. Ela diz que não entende de noticiário econômico, só sabe que sentiu no bolso o encarecimento da vela de sete dias, sua preferida.
Um filho lhe convenceu que o fogo virtual, num app que simula labaredas, também dá conta do recado. Às vezes, apela a ele. Uma vantagem é não precisar colocar o celular no alto da geladeira, como fazia com a vela. Seu cachorro um dia queimou o focinho nela.