Edneide Souza Melo, de 44 anos, pode dizer com propriedade que viveu uma história de filme. A gerente de RH (Recursos Humanos), natural de São Paulo (SP), passou por um problema de saúde que marcou para sempre a sua vida. Em 2017, após retirar um pólipo nasal, ela sofreu um AVCI (Acidente Vascular Cerebral Isquêmico), que é um dos mais comuns dos acidentes vasculares no cérebro, ocasionado por falta de ar em parte do órgão. No entanto, o ocorrido a fez perder 14 anos de memória, possibilitando-a recordar somente de suas vivências até 2003, quando ela não tinha dado à luz à sua filha Nathalia – com 12 anos à época e, atualmente, com 18 anos – e nem casado com o seu atual marido, Thiago.
“Eu tinha 38 anos e trabalhava como diretora de RH em uma empresa de e-commerce (comércio eletrônico) farmacêutico. Era casada há 12 anos e tinha uma filha com esta idade. Acredito que era uma rotina normal de qualquer pessoa que trabalha fora de casa e tem família, pelo menos é o que me passaram”, conta Melo, que repassa as “memórias” das quais não se lembra.
Sensação ao acordar
“Quando vi o meu marido, a impressão foi de que ele era uma pessoa que eu tinha visto em uma entrevista de emprego. Já a minha filha, eu não reconheci”. Ela relembra que Thiago e Nathalia ficaram em “completo desespero” com a situação. “Eles não conseguiam entender o que estava acontecendo.”
Diagnóstico e sequelas
A gerente conta que, ainda no hospital, recebeu o diagnóstico de DCPO (Disfunção Cognitiva Pós-Operatório) e que, no máximo, em 30 dias a sua memória voltaria. A DCPO é uma condição que afeta principalmente idosos após cirurgias com anestesia.
“No próprio hospital, meu marido pediu que os médicos investigassem o que de fato havia acontecido e, entre vários exames, um dos médicos indicou que eu tinha sofrido um AVCI.” De acordo com Edneide, ela saiu do hospital com a esperança de que, após o prazo, a sua memória retornasse, mas isso não aconteceu.
“Desde então eu faço acompanhamento com neurologista, mas não tem uma expectativa da minha memória voltar. Eu fiquei com algumas sequelas cognitivas. Por exemplo, se eu ficar muito nervosa, dou uma travada, troco palavras, tenho alguns ‘brancos’ (lapsos de memória), mas venho acompanhando [a situação]”, relata.
Ela explica que, nos últimos anos, também lidou com um segundo AVC, que paralisou o lado esquerdo do seu corpo. No entanto, os movimentos foram recuperados por meio de fisioterapia. “[O AVC] não gera somente sequelas que são visíveis, mas também sequelas que são invisíveis e difíceis de serem detectadas e aceitas pela sociedade”, desabafa.
Reaprendendo a amar
Edneide define como “fase de adaptação” esses últimos anos de vivência com a sua “desconhecida” família. Ela conta que teve que reaprender a amar Thiago Melo, o seu marido, e que confiou em seus parentes para tomar ciência de que aquele era o seu companheiro há 12 anos.
“No momento em que meu marido falou que nós éramos casados, sim [fiquei desconfiada], mas quando meus pais chegaram ao hospital eles me confirmaram que eu era casada e que tinha uma filha. Também me pediram calma, dizendo que tudo ia dar certo”, relembra.
A gerente de RH diz que o apoio vindo do seu esposo fez com que a sua recuperação e inserção em uma vida “apagada” fosse menos dolorosa.
“Hoje eu acredito que o amor que eu sinto por ele é bem diferente do que ele retrata, que era mais baseado no cuidado, na confiança e na proteção. O meu marido fez com que eu desenvolvesse isso por ele diante de tanta coisa que a gente passou junto”, declara.
‘Esqueci do trabalho’
Passando por dificuldades familiares durante o processo de retomada de consciência, Edneide conta que a vida no trabalho também não foi fácil, já que se “esqueceu de tudo”. No entanto, diz ter tido sorte nas suas relações profissionais. Mesmo perdendo tudo o que tinha aprendido na faculdade, revela que teve total apoio da empresa em que trabalhava.
“Eu esqueci da minha faculdade de Mecânica, mas eu não atuava na área. Eu tive a sorte de fazer parte de uma sociedade em que as pessoas envolvidas me permitiram reaprender a função que eu praticava. Posso dizer que fui uma pessoa sortuda, mas tenho certeza que outras pessoas não tiveram a mesma sorte que eu na questão profissional”, diz.
Ela também conta que ficou confusa com toda a situação, pois em 2003 atuava como profissional de informática e em 2017 – ano do AVC – já trabalhava na área de RH.
“São situações distintas de atuação profissional, tanto é que, com essa defasagem de informações, eu tive que voltar a fazer faculdade. Então, optei por fazer um curso de Ciências Contábeis. Também comecei a ler os e-mails que eu tinha na caixa postal da empresa, para que eu pudesse me familiarizar com o contexto daquela atuação”, relembra.
Assim como o apoio do seu marido foi necessário para amenizar o impacto das sequelas do AVC dentro de casa, a ajuda de amigos próximos também foi importante para que Edneide voltasse com tranquilidade para o seu posto de trabalho.
“Eu tinha duas assistentes que foram fundamentais para mim. Fora a ajuda de outros colegas que foram fundamentais para que eu entendesse a rotina. Isso me ajudou muito a esclarecer as coisas.”
A busca pela ‘cura’
O desespero, após as memórias não retornarem, fez Edneide buscar a “cura” em diversos lugares. Ela participou de regressões espirituais, sessões de hipnose e até tomou o chá alucinógeno Ayahuasca, mas nada funcionou. Atualmente, ela só faz acompanhamento médico.
“É mais focado na minha qualidade de vida. Faço acompanhamento semestral e, aparentemente, [levo uma] vida normal, sem nenhuma novidade”, explana.
Maternidade
Edneide diz que o maior fardo que a sequela do AVC lhe trouxe foi esquecer dos momentos da gravidez, da infância de Nathalia e de todo o amor compartilhado ao longo dos 12 anos de idade de sua filha, “deletados” de sua mente por causa do problema neurológico.
“É uma ferida aberta, mas eu tive a sorte de ter uma filha que tem uma maturidade além do normal. Ela passou pela situação de uma forma sofrida, mas soube entender o que estava acontecendo comigo. Ela soube me apoiar e procurar apoio para entender quem era a mãe dela no contexto todo.”
A relação de desconhecimento com a filha levou Edneide a uma depressão, que foi tratada com a ajuda de uma neuropsicóloga. A profissional recomendou uma “ajuda pet” para unir, novamente, mãe e filha.
Ajuda pet
Conan foi o responsável por levar alegria e diversão para o lar de Edneide. Segundo a gerente de RH, o cachorro ainda é de grande ajuda em seu tratamento, atuando como um assistente emocional. Ela conta que, antes do problema, não tinha uma relação de proximidade com a causa animal, o que mudou após a chegada de Conan.
“Eu acho que a gente muda com as vivências que vai tendo com o passar dos dias. Eu tenho certeza, ouvindo as pessoas que estão à minha volta, que ter um pet antes não fazia nenhum sentido para a minha vida. Hoje, depois de tudo que aconteceu, é fundamental para mim”, valoriza.