Nosso mundo seguro, ou nosso “mundo presumido”, veio abaixo em poucas semanas a partir do início da pandemia de covid-19, no início de 2020. Além das mudanças radicais de rotina de trabalho, isolamento social e perdas financeiras bruscas, famílias começaram a conviver com o luto. A psicóloga Ivana Tolotti, especialista em Teoria, Pesquisa e Intervenção em Luto e em Ações Terapêuticas para Situações de Luto, trabalha com atendimentos referentes ao rompimento de vínculos e tem um olhar especial para as crianças e adolescentes que perderam pais e familiares com a covid-19.
A psicóloga explica que compreender o luto infantil exige também uma compreensão do desenvolvimento cognitivo da criança. “A primeira coisa que a gente pode apontar é que uma criança está em desenvolvimento cognitivo e emocional diferente de um adulto, que já tem seu desenvolvimento cognitivo concluído. Dependendo da faixa etária da criança, ela vai compreender o conceito de morte de maneira distinta. O luto da criança passa pelo luto do adulto, que cuida dela. A criança precisa de cuidado, de proteção. Quando ela perde um avô, um pai, uma mãe, é o senso de proteção que ela perde: quem é que vai cuidar de mim agora? O luto vai nos deixando um tanto indisponíveis para o outro”, explica a especialista, que fez atendimentos voluntários e auxiliou especialistas em Jundiaí que trabalham num projeto social – “Mães que Acolhem” – com crianças em situação de orfandade por causa da covid-19.
Neste processo de sofrimento contínuo e múltiplo, muitas dúvidas surgem nas famílias que perderam entes queridos e onde há crianças. Como falar sobre a morte? A criança deve participar do velório, do funeral? A criança deve ser alertada antes sobre o risco de morte de um familiar, especialmente se for pai ou mãe?
Pensar que a criança não percebe é um erro´
“Nossa sociedade tende a tratar a criança como meio café com leite. Não é incomum que elas não participem do que está acontecendo na família, de um processo de adoecimento, e talvez até de uma morte. Pensar que uma criança não percebe que alguma coisa está acontecendo, é um erro”, alerta a psicóloga. Se a família vive um momento de tensão com algum infectado por covid-19 e prefere não contar para a criança, ela começará, segundo Ivana Tolotti, a duvidar da sua própria percepção ou a duvidar do adulto.
Não funciona, com crianças, inventar historinhas se a rotina delas foi completamente alterada por alguma razão. Os pais precisam e se recomenda que sejam sinceros. “A criança percebe. Ela percebe que o pai está chorando, que antes era a mãe que cuidava dela e agora ela tem que ficar na casa da avó”, conclui a especialista.
Rituais de despedida: a criança deve ir ao velório?
A morte é uma informação que precisa ser digerida, e isso leva tempo. Os rituais, de acordo com a psicóloga, são importantes para esse processo de assimilação. “Os rituais possibilitam uma organização de uma experiência que é altamente desorganizadora.” Segundo a psicóloga, esse processo de “realizar a morte” foi muito dificultado na pandemia de covid-19 pela impossibilidade de realização de rituais. “Eu só posso imaginar o que é deixar o seu ente querido na porta de um hospital e buscar um caixão. Só posso imaginar”, lamenta a psicóloga.
“E há outro aspecto do ritual: o velório é um espaço autorizado para você sofrer. Você pode expressar todo o seu pesar, com menos julgamento. E é um lugar em que você recebe apoio de toda a comunidade.”
E as crianças devem participar? Para Ivana Tolotti, não existe uma resposta adequada e esse questionamento. O ideal, diz a psicóloga, é conversar e perguntar para a criança se ela quer participar. “A gente dá para a criança um pouco de controle sobre o sentimento dela. Possibilitamos que ela participe deste processo de decisão.” Claro que a forma de explicar sobre o que é o velório, o enterro e a própria morte é algo que exige didatismo e a compreensão da faixa etária da criança.
Como ajudar a criança no processo do luto?
O luto é potencialmente traumático, mas não necessariamente vai gerar um trauma na criança, explica a psicóloga. “É uma situação traumatogênica, pode ser traumática, mas não necessariamente. Se essa criança puder ter adultos que cuidem dela, que acolham a dor dela, que deem espaço para ela expressar os seus medos e fantasias, ela vai ter melhores condições de se reorganizar do que uma criança que não tiver esse espaço garantido”, aponta a especialista.
Outra questão que precisa ser avaliada pela família é que, além da perda de um ente querido e fundamental para sua própria vida, a criança pode ter ainda perdas secundárias muito dolorosas, como mudança de casa, mudança de núcleo familiar, mudanças bruscas de rotina e até mesmo mudança de escola, por razões financeiras. Quanto menos a família alterar a rotina da criança, melhores são as condições para que ela se fortaleza para vivenciar o luto.
Todos nós, pontua Ivana Tolotti, reagimos aos rompimentos de vínculos. “A gente não aceita de bom grado. As reações podem ser de muitas ordens.” Alguns ficam mais excitados, eufóricos; outros, mais entristecidos ou deprimidos. Isso também ocorre com as crianças, o que pode provocar reflexos na rotina escolar. A criança pode ficar desatenta, não participar das aulas, ter reações cognitivas, como perda de memória, explica a psicóloga.
É possível, ainda, que ocorram algumas reações comportamentais: “A criança pode regredir em comportamentos, voltar a fazer xixi na cama, chupar o dedo, ou pode ficar com cuidado compulsivo do outro cuidador, que sobreviveu.” Pode haver, ainda, aumento de ansiedade e até mesmo situações em que a criança tente “testar a morte”, o que exige bastante atenção dos familiares e responsáveis. “Muitas vezes essa é uma fantasia da criança de que, assim, ela vai encontrar a pessoa que perdeu”, alerta a especialista.
O luto nos afeta em todos os âmbitos da vida. No caso das crianças, dar a ela espaço para sentir a dor, sem julgamentos, e tentar preservar ao máximo a rotina que tinham antes daquela morte dará um pouco mais de previsibilidade e segurança, ensina a psicóloga.